AINDA SOBRE AS PALAVRAS
30-06-2017 - Maria do Carmo Vieira
Estou cansado de palavras que não conduzem a nada.
O meu coração adoece quando recordo as boas palavras e todas as promessas quebradas […].Apenas pedimos uma oportunidade de viver como os outros homens vivem.
Chefe José |
Dando continuidade ao tema do último artigo, a propósito da trágica perda de significado das palavras, a epígrafe, que inicia o novo texto, evoca um extracto do discurso do Chefe José, em 1877, perante o Presidente, norte-americano, Hayes, em Washington, após a guerra desencadeada pela posse da terra, Idaho ocidental, junto à fronteira com o Oregon, na qual fora descoberto ouro (anos 70 do século XIX) e daí o desejo do governo norte-americano em transferir as tribos designadas, pelos primeiros franceses (1805), «Nez Percés» (Narizes Furados), para outros lugares. A sua recusa em obedecer determinou a guerra, não sendo difícil compreender quem dela saiu vencedor. Do general Howard, o vencedor, diria o Chefe José «conhecer o seu coração».
Na mesma luta desigual pela posse de terras ancestrais, que foram roubadas, pondo arcos e flechas contra balas, se encontram os índios Gamelas (1) do Estado do Maranhão e do Piauí, no Brasil. Tudo se passou muito recentemente, em Abril de 2017, quando os Gamelas, juntamente com outras tribos, ousaram protestar em Brasília para reivindicar as suas terras, tendo os primeiros ocupado uma dessas terras, que há 17 anos esperam que lhes sejam devolvidas. O número de vítimas e a violência com a Polícia Militar indignou, mas a indignação esbateu-se com o passar dos dias e, por cá, a Comunicação Social não deu pelo sucedido. A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) é o exemplo flagrante da «bondade de palavras» que «não conduzem a nada». Órgão do Governo, deve perversamente o seu enfraquecimento ao próprio Governo, cujo «coração» também os Índios conhecem, sabendo, por experiência de anos, do quase nulo interesse na resolução dos problemas relacionados com a entrega de terras que lhes foram, e continuam a ser, roubadas e com «a delimitação técnica dos territórios indígenas», tendo sido o ano de 2016 um dos piores em mortos (61) e conflitos pela terra (1536).
A História repete-se e reencontramos promessas que «as boas palavras» não fazem cumprir. Ontem como hoje, os ameríndios relevam o desprezo do «homem branco» pela sua Cultura e a diferença que os separa na forma de pensar a terra, seja o Chefe Seattle, em 1854, quando o Governo americano forçou a compra das suas terras (actual Estado de Washington): «Como se pode comprar ou vender o firmamento, ou ainda o calor da terra?» […] «Cada parcela desta terra é sagrada para o meu povo» […] «Somos parte da terra e do mesmo modo ela é parte de nós próprios», ou o Chefe José, em 1877, que derrotado apenas pedia que pudessem viver em paz com os brancos: «Tratem todos os homens da mesma maneira […]. A terra é a mãe de toda a gente e toda a gente deve ter os mesmo direitos nela», ou ainda Jadenir Trinidad (índio Gamela), em 2017, lamentando a perda de território ancestral: «A terra, para nós, não é uma coisa que se venda. É a nossa cultura. No rio Piraí, aqui ao lado, está a casa dos nossos seres espirituais. Como fomos separados desse rio, perdemos a possibilidade de manter o nosso modo de vida, a nossa religião».
As sucessivas mentiras, espelhadas em «boas palavras», a falta de compaixão perante o sofrimento, as promessas adiadas ou «quebradas», a exploração desenfreada na compra de terras, para apropriação de recursos naturais, determinando o empobrecimento de povos, sejam eles quais forem, mantêm-se porque o comportamento dos homens ao longo do tempo, no essencial, não varia.
Às vozes convictamente críticas e veementemente empenhadas na alteração das situações que massacram os outros, atingidos por diferentes tipos de violência, em diferentes geografias, vozes essas que são essencialmente de civis, sobrepõe-se a barbárie dos vários «Howards» do mundo ou a lentidão de actuação de muitos políticos, nacionais e estrangeiros, esquecidos da sua própria experiência de seres humanos, com um corpo que diariamente exige alimento, agasalho, repouso, cuidados de saúde, aspectos elementares apenas a evidenciar o que não pode ser adiado precisamente porque causa sofrimento e põe em risco a própria vida.
Na verdade, são intemporais as sapientes palavras de um velho ameríndio - «Há um número infinito de homens brancos e um número finito de seres humanos» - , no seu profundo e experimentado conhecimento da alma humana.
Maria do Carmo Vieira
(1) A informação sobre o sucedido foi retirada do texto de Fernando Sousa, «Má sorte ser índio, e no Maranhão», na Revista Além-Mar, de Junho de 2017
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