A Propósito do 25 de Abril
22-04-2016 - Maria do Carmo Vieira
O Tempo foi passando, sem macular a nitidez do momento histórico que tantos de nós presenciámos, e resguardando, com a nossa veemente cumplicidade, a alegria sempre sentida e tão intensamente iluminada por um belo cravo vermelho, símbolo do 25 de Abril de 1974. Ensinou-nos este dia, incansável e orgulhosamente lembrado e festejado, quão necessário é acreditar, com convicção, que toda a mudança, mesmo a que parece difícil de cumprir, só depende de nós, da nossa ousadia, do nosso sacrifício e da nossa força de vontade em vencer. Assim acontecem os milagres, os milagres que os homens numa acção conjunta, movidos pela nobreza de uma causa, conseguem realizar.
Ontem, foram os Militares de Abril, de que relevo, com profunda admiração e gratidão, os nomes do major Melo Antunes e do capitão Salgueiro Maia; hoje, seremos nós, beneficamente contagiados pela sua coragem e pela sua acção, a teimar na continuidade do exemplo, de forma a não trair uma herança cujos valores transmitidos se familiarizam com a liberdade, a generosidade, a justiça social e a capacidade de pensar por si próprio.
No momento difícil em que vivemos, pela integração numa União Europeia que, de forma ostensiva e arrogante, tem defraudado os nobres objectivos que originariamente a nortearam, massacrando e empobrecendo, com a austeridade, os países mais frágeis, entre os quais Portugal se inclui, a comemoração dos quarenta e dois anos do 25 de Abril adquire uma força ainda mais expressiva porquanto relembrará um povo descontente que se libertou de uma ditadura, e que agora também não aceita ser espezinhado e humilhado pelos «misericordiosos» europeus. Agradeço a Santo Ambrósio (339-397) a finura do adjectivo de que me servi, tendo-o retirado de uma frase de um discurso seu, dirigido aos ricos, que na sua intemporalidade se aplica à perfeição a esta União Europeia: «Tais são, ó ricos, os vossos benefícios: dais pouco e exigis muito. Esta é a vossa humanidade: roubais, até quando dizeis que socorreis. […] não desprezes o pobre que ganha a vida com o suor do seu rosto e se sustenta do seu salário. É homicídio negar a um homem o salário que lhe é necessário para viver.»
Foi dignidade o que o 25 de Abril trouxe ao povo português, sedento que estava da mesma. O momento actual exige-nos a mesma postura em relação à União Europeia e por isso mesmo queremos acreditar que o discurso político a desenvolver caracterizar-se-á pela seriedade e pela honestidade, atitudes estreitamente associadas à firmeza e à persistência de uma política que demonstre que a austeridade foi um caminho perverso, conscientemente perverso, porque movido por uma ideologia que não cultiva a compaixão, mascara o significado das palavras e desrespeita as pessoas, sobretudo as que, nas palavras de Vieira, se tornaram o alimento diário dos «grandes» e dos poderosos, dos que intemporalmente «se alimentam dos pequenos». Porque grande apologista dos clássicos, não deixarei de transcrever as palavras do grande orador, no seu Sermão de Santo António (aos Peixes): «[…] o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come; e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem […]».
Foi muito o que obtivemos com o 25 de Abril de 1974, nomeadamente a democracia, e com ela, por exemplo, a liberdade de imprensa, o serviço nacional de saúde, a universalidade da instrução, o interesse pela cultura, os direitos laborais, a aspiração a uma vida digna. Bens essenciais que foram sendo palco de ganhos e de perdas, consoante a intervenção governamental, mas nunca, na verdade, postos perigosamente em causa, como aconteceu, de forma intolerável, nos últimos anos. Um verdadeiro «mundo às avessas», dominado superlativamente pelo oportunismo, pelo comportamento corrupto, pela mentira e pela falta de compaixão.
Porque isto aconteceu, e poderá repetir-se, devemos permanecer em estado de alerta, observando, atenta e criticamente, o que se passa dentro do nosso país, na Europa e no Mundo, e intervir quando necessário, sem medo e sem subserviência. Esta nossa postura será sempre uma forma de comemorar o 25 de Abril cujos ideais herdámos.
Maria do Carmo Vieira
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