Janeiro, 2016
15-01-2016 - Maria do Carmo Vieira
A nobre guerra é feita por parasitas, infames, |
ladrões,assassinos, imbecis, devedores, escroques, |
em suma pela escória da sociedade […]. |
Erasmo de Roterdão (1466-1536) |
Salvem-me , lê-se em carta enviada por Max Jacob, poeta e pintor judeu francês (12 de Julho de 1876 - 5 de Março de 1944), aos seus amigos Jean Cocteau e Pablo Picasso, entre outros, quando feito prisioneiro pela Gestapo e enviado para o campo de deportação de Drancy, em França,após denúncia de que se encontraria escondido no convento de Saint-Benoît-Sur-Loire onde, na verdade, foi surpreendido pelos nazis, na manhã de 24 de Fevereiro de 1944.
Suplico-lhe, querido amigo: pelo amor de Deus, salve-nos !..., pedido angustiado de um chefe de família belga a um amigo suíço para que salvasse a sua família da ida certa para um campo de concentração nazi.
Estes apelos desesperados não foram infelizmente bem sucedidos, devido à óbvia falta de vontade na sua resolução, em simultâneo com a extrema burocracia que um qualquer pedido deste tipo significava, mesmo por parte de alguém bem colocado e preocupado em ajudar, caso de Jean Cocteau no que diz respeito a Max Jacob.
Hoje, convivemos diariamente com imagens de crianças, mulheres e homens, em situação desesperada, cujos rostos, marcados pelo sofrimento e por um indescritível cansaço, repetem as palavras de ontem, e de sempre, em contextos históricos diferentes, tendo em comum a guerra e a barbárie sem freio que se manifestam, sabemo-lo, independentemente da cultura dos povos e da sua geografia.
Não valea pena invocar de forma repetida os valores humanistas europeus quando perante a tragédia diária dos refugiados, na sua fuga pela salvação, se assiste, com acomplacência da Europa comunitária, à construção de muros, ao arame farpado, às bastonadas, àpolícia acompanhada de cães e aoutros obstáculos afins, em que se incluem igualmente a burocracia, o adiamento de decisões, a morosidade no desenvolvimento dos processos dos refugiados, numa imensa indiferença pela situação de total miséria em que se encontram. Em suma, assiste-se ao falhanço de uma Europa que se diz pautar pela solidariedade. Testemunha-o ainda o número de refugiados, cerca de 300, encaminhados até ao momento para países de acolhimento, ou as centenas de milharque continuam em espera desesperada, em campos superlotados ou na passagem de fronteiras.
Não é possível falar de refugiados sem lembrar o nome de Aristides de Sousa Mendes (Cabanas de Viriato, 1885 – Lisboa, 1954) e o seu gesto humanitário, aquando da invasão de França pelos nazis, encontrando-se como cônsul na cidade de Bordéus (Junho de 1940), cargo que ocupava desde 1938. Vivamente impressionado e condoído pela indescritível angústia e pelo imenso sofrimento dos refugiados que, afinal, poderiam ser ele próprio e a sua família, conforme interiorizou, Sousa Mendes ousou desobedecer a ordens decretadas pelo seu país, indiferente às consequências políticas e pessoais da sua atitude e «com pleno conhecimento das suas responsabilidades», como salientou ainda, no desejo de sublinhar que a salvação de todas aquelas pessoas dependiam afinal de uma assinatura sua e que ele decidira não a recusar, passando vistos a todos, sem excepção. Um comportamento que responde na perfeição à frase do escritor americano Henry Thoreau (1817-1862) - obedecer em determinados momentos é como confessar que nada valho - e que constitui um forte motivo de reflexão sobre o argumento, que se pretende inquestionável, de «obedecer a ordens», colidam elas ou não com a nossa consciência. O cônsul de Bordéus soube compreender o significado do rosto dos refugiados que lhe suplicavam uma assinatura, a assinatura que lhes daria a vida a si e aos seus familiares. Esta sua «má-inspiração», conforme palavras acusatórias no processo disciplinar que lhe foi movido,custou-lhe uma severa punição, definida a 30 de Outubro de 1949 e na qual, hipocritamente, se reconhecia a sua «incapacidade profissional […] para dirigir consulados».
Justos, como Aristides de Sousa Mendes e tantos outros, são, em Portugal e no mundo, exemplos de excepção que iluminam, mas a eles junta-se igualmente, e para bem do mundo, uma imensa multidão anónima que, guiada pela compaixão e pela vontade indómita de intervir em prol dos outros, desobedece à inércia que adia, desmontando também inteligentemente a bondade mascarada de muitos discursos, alguns dos quais de comentadores, fortemente empenhados em enumerar as diferenças que aparentemente, e em teoria, nos separam dos refugiados, fomentando assim sub-repticiamente a ideia de que deverão ser considerados uma ameaça, logopersonae nongratae.
Renovado o ano, repetidamente sob o signo do deus Janus, que deu origem a Janeiro (daí a maiúscula), e cuja representação é feita com um duplo rosto, olhando um para o passado e outro para o futuro, desejamos, de forma muito intensa, que 2016 possa em si conter o cumprimento de muitos desejos que 2015 abafou, entre os quais o de uma solução séria e justa para os refugiados, que noutras circunstâncias poderíamos ser nós, bem como para outras situações de forte injustiça, ditadas pela austeridade de quem foi incapaz de sentir o sofrimento à sua volta.
Maria do Carmo Vieira, professora aposentada
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