A GUERRA DOS VENCIDOS
05-01-2024 - José António Marques
Chove aço sobre a Ucrânia chove aço sobre a Rússia, maldita guerra.
A Europa aduba-se com sangue de povos quase irmãos, outra vez, mais uma vez.
Que mãe pariu esta catástrofe?
Seria tentador dizer que nasceu da incompreensão geopolítica, mas, a simplicidade aparente é quase sempre sinal de presença de mestres jogadores.
A Rússia agride, é matéria de facto consensual. O direito internacional confirma, a defesa ucraniana, sublinha.
Mas os estados autenticamente soberanos possuem ancestral direito não escrito. Defender os seus interesses estratégicos. Impor ao outro a sua vontade pela forca diplomática ou militar é a base da real política de ontem hoje e sempre.
A Rússia é potência, senhora de territórios colossais, e ricos, um gigante com pé na Ásia outro na Europa. Tradição e cultura ortodoxa Bizantina na sua génese.
Há excepção dos ortodoxos os restantes Europeus sempre olharam o gigante com um misto de admiração e desconfiança. A corte do Czar também foi morada do Tártaro.
Os grandes estadistas Russos perceberam a importância de acesso ao mar, sem mar a Rússia, é um gigante agrilhoado ao continente asiático. Pode rugir, mas o alcance das garras será sempre limitado pelas fronteiras continentais. A Rússia sem mar nunca terá dimensão mundial.
Três saídas, o pacifico a leste, o báltico a norte e o mar negro a sul.
A independência das três repúblicas báltica e adesão destas à OTAN, limitam a saída do báltico aos limites de Pedro, um retrocesso de mais de dois séculos.
A Independência da Ucrânia acrescida da península da Ucrânia, que foi tártara, otomana, búlgara, mas nunca ucraniana, limita a Rússia a sul.
A exportação de matéria prima, gás e óleo, madeira e grão, depende do controle dessas saídas, a sua projecção geo-política também.
Uma marinha mercante e militar de primeira qualidade e portos capazes são fundamentais. O almirante Gorshkov percebeu, Putin também e a armada de 400 naves sublinha.
Realisticamente a Rússia não pode aceitar as fronteiras circunstanciais filhas do turbilhão político da era final de Gorbashov e presidência de Ielstin e muito menos forças naval da OTAN em Feodosiya. A guerra era previsível, Kennes viu-o, e muitos outros também.
Quase dois anos depois que se alcançou? Quem ganha com o sangue?
Certamente não a Ucrânia que sem a guerra terminar já a perdeu.
Fracturada no terreno e dividida entre uniatas e ucranianos russos.
Meio milhão de cidadãos vestiram camuflado, a bancada de trabalho é agora o tabuleiro de trincheira, e resistem heróicos enquanto em casa mães e esposas velam e choram no enterro de militares e civis, aos milhares, às dezenas de milhares, tudo aos milhares, sempre tudo em múltiplo de milhar.
Aos milhares os estropiados que na retaguarda se juntam, a outros milhares psicológicos afetados e tresloucados, a crianças e velhos a viverem em casebres de tristes campos, que para concentração serem só lhes falta o arame e talvez o racionamento.
Biliões de dólares de infra-estruturas, indústrias, pontes, estradas, são escombros amontoados de tijolos e ferro torcido sem préstimo, entre elas, as escolas oficina dos futuros quadros.
A heróica Ucrânia, porque de heróica se trata, resiste com a desvantagem de uma população cinco vezes menor, e sofre, sofre para alem do imaginável, ate quando?
Até que o tempo triture a resiliência e esgote a veia viril.
Bruxelas, finge acreditar em milagres. Deseja boa sorte, já o cidadão europeu entre garfadas ao jantar olha plácido o confronto dos gladiadores titãs, e lamenta … o preço do combustível e a inflação.
Bruxelas e o distante e estranho amigo americano, descarregam palavras circunstanciais, promessas de futura radiante aurora, junto com contentores de mimos militares sofisticados uma colecção de biliões, que a guerra não é barata, para agrado dos velhos ``krupp´s``, sentadinhos no veludo da administração industrial militar.
E o tempo passa, o mundo efervesce o clique do relógio aproxima o dia incontornável da cedência e paz.
Ao sopro d´aço sucederá o vento do esquecimento das promessas, mas não das dívidas porque os amigos têm contas à parte, A Ucrânia que sobra, terá de pagar parteleãodo armamento recebido e mais uns biliões para a reconstrução.
Nem com novo milagre dos pãezinhos do cesto das oliveiras poderá o PIB deste país, enfrentar tal hercúlea despesa, mesmo que corrupção não houvesse.
A Ucrânia perdeu. Perdeu no sacrifico de uma geração passada a adubo.
Perdeu nas vilas niveladas ao solo, e as cidades a pilhas de escombros, infra-estruturas reduzidas a nada, campos queimados.
A Ucrânia perdeu o território entregue ao inimigo que nunca recuperara nem com paz assinada nem pela impossível acção armada.
Caladas as armas, no rescaldo desta guerra maldita descerá nevoeiro porque nebulosa será a paz.
Os heróicos combatentes desfilarão pelas sombras dos becos, porque a avenida de César se reserva aos prevenidos que amealharam na Suíça, e burocratas de Bruxelas e da América.
E dirão do alto da sua sapiência imperial e anafada.
A Ucrânia tem de abrir-se, ao liberalismo, à democracia e claro está ao grande capital.
Será este a montar as suas indústrias de acordo com o seu próprio interesse, e a gerir os seus recursos, será a Monsanto senão a proprietária pelo menos o gestor dos seus celeiros, os campos que a sua juventude adubou serão negócio das multinacionais alimentares, e as cidades que protegeu de arma na mão, serão lar de imigrantes não europeus.
Empréstimos e pontuais fundos perdidos atados com estreite feixe legislativo, serão a única promessa cumprida, tudo muito técnico e asséptico que sangue não se contabiliza para quem não o verteu.
A Rússia triunfante também perde.
Os radicais nacionalistas até agora controlados, são chamados a palco ou escalam-no sem cerimónia.
Os kadyrovisychechenos levantam a bandeira do Islão, num protagonismo não desejado no confronto civilizacional. Mais uma vitória para o Islão. Mais uma derrota para o ocidente e mundo ortodoxo.
A Rússia isolada, asiatiza-se. O projecto Euro-Ásia flor querida de alguns intelectuais sonhadores, é papel amassado.
Aí da Rússia sem Putin! Ou o caos, ou sentar-se-á na mesa do Kremlin um novo czar fanático capaz de trazer saudades de Putin, é sempre preferível o demónio que conhecemos ao diabo desconhecido.
Esqueçam a fantasia de uma Rússia democrata, leia-se americanizada, nunca sucederá, é contrário à genética cultural desses povos.
O mundo seria um espaço mais saudável se os campeões democratas entendessem por fim, que ser democrata é também admitir e respeitar quem não o deseje ser. O modelo euro americano não é receita universal.
E a Europa, essa velha decadente megera, que já foi farol civilizacional também perde.
Isolada do mundo, arrasta-se indolente como lacaio preguiçoso atrás do mestre americano, incapaz de um gesto mínimo que revele inteligência ou estratégia autónoma. Fechada, numa carapaça de frágil vidro julga-se segura, entretida na discussão do sexo dos géneros, ou dispensando humanidades, que o restante mundo despreza, odeia e vê como fraqueza.
A Europa mais uma vez incompleta sem a sua parte russa branca, mais desvirilizada, mais pobre, é definitivamente condenada a viver à sombra do chapéu cowboy. Ao romper com o russo rompemos com um potencial aliado no choque civilizacional que se advinha.
Atrelada ao Americano, sem líderes de valor, algemada nos nossos absurdos existencialistas, a Europa, esvai-se, moribunda, senil, suicida, pronta a confrontos, diplomáticos e quiçá militares por este mundo fora, estranhos aos seus interesses, com os seus exércitos apêndice do exército imperial americano, a usar quando e onde a estes convir.
Tudo isto no meio de uma insegurança tremenda, finda a guerra, milhões de armas ao deus dará, serão as ferramentas dos novos terroristas e criminosos de amanhã.
Prolongar a guerra impossível de vencer não serve os interesses de ninguém.
José António Marques
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