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A DESEJÁVEL EPIFANIA DO OUTRO

17-06-2022 - Maria do Carmo Vieira

A nossa época não se define pelo triunfo da técnica pela
técnica, como também não se define através da arte pela
arte, assim como não se define pelo Nihilismo. Ela é acção
para um mundo que se aproxima, superação da sua época -
superação de si que exige a epifania do Outro.

Emmanuel Levinas (Lituânia, 1906 – Paris, 1995)

 

 

 

 

 

 

 

 

É o filósofo Levinas e a sua ideia da revelação do Outro, conforme epígrafe escolhida, o inspirador do presente texto, num tempo em que se continua a fingir não conhecer, em que se continua a massacrar, mormente as minorias, e em que a Ética, objectivo primeiro da Filosofia, na perspectiva do mesmo pensador, continua também afastada do poder político, apesar da pretensa bondade de muitos dos discursos proferidos. É igualmente intrínseco a Levinas, mediante a sua condição de judeu-testemunha do olhar de ódio nazi, a relevância dada ao rosto do Outro e ao significado de responsabilidade que forçosamente implica, numa visão igualmente ética. Em suma: «quanto mais justo eu for mais responsável serei; nunca nos livramos de outrem.»

Leva-nos a alteridade à viagem e à diversidade dos seus significados, abrangendo migração, ida e regresso de uma aventura, procura de um «paraíso», peregrinação, expansão religiosa ou domínio territorial e comercial, experiências que, traduzindo o contacto com outras terras, costumes e natureza, proporcionarão naturalmente o encontro com o Outro, por conhecer ou já conhecido, não podendo excluir-

-se dessa relação a agressividade e a violência, ditadas comummente pela ambição de poder e de riqueza e consequentemente pelo desprezo por quem é diferente.

Ontem como hoje, a diferença não é muita e a linguagem usada, ao longo dos séculos, testemunha-o. Lembrando, por exemplo, os diferentes relatos de viagens dos séculos XV, XVI ou XVII, seja de portugueses ou de espanhóis, por África ou pelo Novo Mundo, o egocentrismo cultural de quem invade para colonizar é permanente, aliando-se de forma contínua à crueldade e à humilhação face ao Outro, descrito, invariavelmente, como «bestas em semelhança humana» (Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), in Esmeraldo de Situ Orbis); «Comem carne humana […]. Andam todos nus. […] São estúpidos e malucos. […] Mostram-se incapazes de receber lições […] e não querem mudar os seus costumes […] Os Índios são mais bestas do que os burros e não querem ter trabalho no que quer que seja.» ( Carta do dominicano Tomaz Ortiz (séc. XVI) ao Conselho das Índias); Vivendo «como animais […] tão brutos e cerrados de entendimento» (Frei André de Faro, a propósito da Serra Leoa, 1663-1664).

E para quem julga, de forma acrítica, que muitos dos que lutaram, pretensamente, em nome da Civilização e do Progresso, tidos como herdeiros dos valores humanistas, são nomes de heróis europeus a reter de geração em geração, convido a ler, por exemplo, as reportagens das campanhas em que o considerado «grande estratega» da Segunda Guerra Mundial, William Churchill, participou, na Índia e no Sudão, neste último caso integrado no exército anglo-egípcio, nos finais do século XIX, com realce, para a Batalha de Ondurman (1898), (reconquista do Sudão, 1896 - 1898). Na sua Autobiografia (1930), A MinhaJuventude, a propósito da referida batalha, escreveu: «Foi o último elo na longa cadeia daqueles espectaculares conflitos cujo esplendor vivo e majestoso tanto contribuiu para dar à guerra um carácter sedutor» […] Este tipo de guerra estava cheio de emoções fascinantes. Não era como a Grande Guerra. Ninguém contava morrer… Para a maior parte dos que participaram nas pequenas guerras da Grã-Bretanha nessa época longínqua e amena, era apenas um elemento desportivo num jogo esplêndido.» «Jogo esplêndido» que realça em flagrante o significado barbaramente colonialista (séc. XIX) dos europeus (França, Reino Unido, Bélgica, Alemanha, Itália, Portugal…), no seu desejo avassalador de domínio do continente africano, e não só, depauperando-o; uma espécie de «higiene» feita aos povos considerados de «cultura e raça inferiores», para muitos dos quais se apontava a sua extinção. Sempre a sede de espaço, de domínio imperial, de contínuo associado ao «vil metal», em que o Outro é vilmente desprezado e forçado à pobreza, e considerado muitas vezes sem «direito moral a existir». Churchill é ainda a voz desse racismo, não distanciado daquele que caracterizou o olhar dos viajantes das «descobertas». Referindo-se, por exemplo, aos Indianos, afirmou: «Eles são um povo bestial com uma religião bestial» ou consciente da supremacia branca sobre «povos primitivos»: « Não admito, por exemplo, que tenha havido um grande erro em relação aos índios vermelhos da América ou ao povo negro da Austrália. Não admito que tenha havido qualquer erro pelo facto de uma raça mais forte, uma raça de grau superior, uma raça global mais sábia, para colocar nestes termos, ingressar no território e ocupar o seu lugar”. Na verdade, toda a colonização actuou e actua desta forma, independentemente da geografia ou da ideologia dos «heróis políticos» que a defendem como estratégia política.

E não ignoraram, «grandes heróis e estadistas» da política europeia, e também dos EUA, com realce, respectivamente, para Churchill e Roosevelt, as denúncias relativas ao Holocausto, no Guetto de Varsóvia, durante a Segunda Guerra Mundial, feitas incansavelmente por Ian Karski (1914 – 2000), testemunha directa da tragédia e «emissário político da resistência civil polaca» cuja má-sorte dependeu igualmente de atitudes perversas? E como ler a surpresa teatral de Churchill, e afins, no final da guerra, perante as imagens ignominiosas do que acontecera, em Varsóvia e nos tenebrosos campos de concentração nazis? Souberam, mas ignoraram. Assim o ditou a heroicidade costumeira!

Tudo acaba por saber-se, mesmo que a verdade fique zelosamente escondida durante anos. E termino, citando de novo Sven Lindqvist, na obra atrás referida: «Já sabemos quanto baste. Eu também. Não é de informação que carecemos. O que nos falta é a coragem para compreender o que sabemos e tirar conclusões.»

Maria do Carmo Vieira

 

 

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