SANTA SOFIA E O PROJECTO DO “SULTÃO” III
02-10-2020 - Jorge Duarte
Erdogan dominará apenas a metade mais conservadora do seu povo, mas isso não impede este pretenso “sultão” de sonhar com um projecto pseudo-otomano, islamita, congregando as diversas etnias numa federação da Anatólia, revivendo um califado; um verdadeiro Estado Islâmico, regido pela Sharia. Afinal, os passos para este projecto já foram dados através da ampliação dos seus poderes de todas as formas. De 2013 para cá, tem reprimido com brutalidade todas as manifestações contrárias, fechou a imprensa, prendeu jornalistas, milhares de militares, juízes e altos funcionários e acusou o seu ex-amigo e inspirador, o clérigo Fatullah Gulem - a quem deve parte da sua ascensão - de tentativa de golpe de estado. Recentemente, criou uma polícia da moralidade com quase 30 mil vigilantes.
Vale a pena aqui recordar alguns episódios que à Europa diz respeito, protagonizados por Erdogan, um aliado da Nato, com um dos maiores exércitos e pretendente a integrar a União Europeia:
Em 2016, após a crise de refugiados em que Angela Merkl decide sozinha que podiam entrar todos (entraram quase um milhão na Europa), dá-se uma onda de violações nas maiores cidades da Alemanha e Escandinávia. A situação ficou descontrolada e os parceiros europeus, uns recusaram-se a cumprir as quotas impostas pela Alemanha, outros construíram muros. A solução foi negociar com Erdogan para conter a onda de refugiados que entravam pela rota da Turquia e entregar-lhe um cheque de seis mil milhões de euros.
Em 2017, na sequência da crise diplomática com a Alemanha e Holanda em que estes países proibiram ministros turcos de participar em comícios, no âmbito do referendo em que pretendia reforçar os seus poderes, Erdogan apelou aos turcos na diáspora, para que tenham pelo menos cinco filhos, que sejam educados nas melhores escolas, que habitem as melhores casas, que conduzam os melhores automóveis, porque «vocês são o futuro da Europa». Só na Alemanha vivem mais de quinze milhões de turcos. Em toda a Europa, aos cerca de oitenta milhões de muçulmanos, somam-se os da torrente diária e incessante de “refugiados”. Erdogan, como o malogrado Khadafi, tem a noção do alarmante declínio demográfico europeu e da vitalidade da cultura islâmica, por isso, não são vãs as suas palavras. A “guerra” não é só cultural, é uma “guerra” de ventres ou de úteros onde os mais férteis vencerão. Os números falam por si: só um em cada quatro bebés que nasce actualmente na Europa é filho de europeus autóctones.
Fevereiro 2020. Após a morte de três dezenas de soldados turcos numa ofensiva no norte da Síria, Erdogan pressiona a EU a apoia-lo enquanto abre as fronteiras por 72 horas para passagem de mais refugiados para a Europa. Bruxelas estremeceu mais uma vez.
Março de 2020. Charles Michel, presidente do concelho europeu, desloca-se à capital turca a fim de convencer Erdogan a parar de empurrar milhares de imigrantes para as fonteiras da Grécia, com a promessa de mais um cheque. Enquanto a EU reclama o cumprimento do acordo de 2016, Erdogan vai chantageando com a questão Síria.
Depois da sua participação na guerra civil síria, em que a Turquia desempenhou um importante papel ao Daesh, facilitando a passagem pelo seu território do contrabando do petróleo vendido pelos terroristas, desenvolve agora uma grande operação no norte da Síria para ocupar uma vasta zona onde pretende alojar os quase quatro milhões de refugiados que tem dentro das suas fronteiras e, ao mesmo tempo, expulsar os rebeldes curdos.
Os últimos meses têm elevado a tensão entre Chipre e Turquia quando esta, em clara violação das fronteiras territoriais marítimas, pretende explorar gás natural e petróleo na zona costeira de Chipre. A actividade naval turca nesta zona tem implicações directas com a Grécia, acrescidas às tensões com os refugiados e a um passado histórico de rivalidades e guerras. A ameaça da abertura de fronteiras com a exaurida e abandonada Grécia, para passagem de mais milhares de refugiados, a violação do espaço aéreo grego por caças turcos, aumentam a escalada.
A Turquia estende a sua mais recente influência ao conflito na Líbia. Um Estado desagregado e governado por senhores da guerra, com as suas mais de 140 tribos e rico em petróleo de que a Turquia precisa, é ainda uma das principais portas de saída de imigrantes provenientes do continente africano. Com o quase pleno controlo sobre este “troféu”, o braço turco amarra agora o Mediterrâneo como um laço. Toda a imigração no Mediterrâneo está sob o seu controlo. E neste caso, significa também, o controlo e a pressão sobre a Europa.
Com a subida de popularidade por conta de Hagia Sophia, da basílica de Chora, do controlo do Monte do Templo e “libertação da Al-Aqsa, em Jerusalém, da posição de chantagem sobre a Europa, da polícia da moralidade ao seu dispor e do maior exército da região, pode bem Erdogan sonhar com a substituição da laicidade do Estado e o retorno ao domínio islâmico da Turquia nacionalista e entrar nos “rectos caminhos” para a comunidade de crentes, rumo a um salafismo pio - transportado aos ombros dos escritos de Sayd Qutb, obreiro espiritual da Irmandade Muçulmana que tanto admira - e com o trono de “grade sultão”, que espalhará a Sharia pela terra…
Enquanto a Europa choca o ovo da serpente.
Jorge Duarte
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