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"Ainda não estamos a escolher entre dois doentes, se nada for feito chegaremos lá"

22-01-2021 - Ana Mafalda Inácio

Pré-catástrofe. Presidente do colégio da Ordem pede reforço do confinamento. Nas UCI, os doentes ainda entram pelo seu estado e não pela doença. É assim que deve ser. Mas há escassez de recursos.

A Ordem dos Médicos lançou ontem mais um apelo aos governantes e à sociedade portuguesa: "Os profissionais de saúde já não conseguem salvar todas as vidas", refere em comunicado. E vai mais longe: "Neste momento os profissionais de saúde já estão a tomar decisões complexas e muito difíceis em contexto de medicina de catástrofe e de estabelecimento de critérios de prioridade". Decisões que deixam "sofrimento ético". Portugal é agora referido como o país do mundo que mais casos tem de infetados por milhão de habitante. É o pior dos cenários, com mais de cinco mil internados em enfermarias e 664 em Unidades de Cuidados Intensivos (UCI).

Ao DN, o presidente do colégio da especialidade de Medicina Intensiva afirma que "ainda não estamos na fase de escolher entre dois doentes críticos, mas se nada for feito rapidamente chegaremos lá".

O presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Intensiva (SPMI) corrobora a afirmação, salvaguardando: "Ainda estamos a selecionar como sempre o fizemos, a pensar no doente", embora admita que já "estamos numa situação de pré-catástrofe".

O presidente do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas (CNEDM) da Ordem dos Médicos relembra, por seu lado: "Há um documento feito por este órgãos onde estão definidos os critérios de admissão de um doente em unidades de cuidados intensivos em caso de medicina de catástrofe. É bom que se recorde este documento e que profissionais e unidades discutam o que têm a fazer".

E sublinha: "Os nossos alertas vêm de há muito e, infelizmente, tinham razão de ser". Neste momento, sustenta Manuel Mendes da Silva, "as decisões já não têm a ver com a ética, mas com decisões técnicas e até políticas". O conselho a que preside fez o seu papel, "alertou em devido tempo e definiu critérios e recomendações".

Critérios e recomendações que para quem se dedica à medicina intensiva "não são novidade", porque a própria especialidade já exige uma seleção ou triagem dos doentes, mesmo sem pandemia. Talvez seja, dizem-nos, a especialidade em que os profissionais se têm de preparar para a decisão em que, "nem sempre o melhor para o doente é sujeitá-lo a mais tratamentos". Isto mesmo, nem sempre é compreendido por colegas de outras especialidades, que "chegam a dizer-nos que estão ali para salvar doentes e não para os deixar morrer", refere um médico intensivista.

Mas uma coisa é quando se decide no interesse do doente, outra é quando há escassez de recursos. E foi neste sentido que tanto o colégio da especialidade da ordem e o conselho de ética elaboraram documentos publicados, já durante a segunda vaga, a relembrar à classe o que é fundamental em medicina de catástrofe. Ontem, voltaram a fazer o mesmo, porque para quem está no terreno: "A situação não está controlada".

O presidente do Colégio da Especialidade, José Artur Paiva, argumentou ao DN, que no documento elaborado pelo aquele órgão está bem definido o dever de planear, e que este obrigava à definição de planos de contingência e à restrição da atividade que pudesse ser suspensa para que os recursos humanos pudessem apoiar a medicina intensiva. E, no fundo, é o que tem vindo a ser feito e até ordenado em despachos da ministra da Saúde.

Mas só isto não chega, há também a responsabilidade individual de cada um. E, neste sentido, José Artur Paiva comenta: "Neste momento, temos uma receita que assenta num confinamento light, e é uma receita condenada ao insucesso. Espero sinceramente que o Governo reforce as medidas tomadas, que feche escolas e acabe com exceções".

O presidente da SPMI, João Gouveia, alerta para outra situação: "Há muitos hospitais que ainda não estão a cumprir o despacho da ministra que suspende a atividade não urgente de forma a deslocar profissionais para o apoio às enfermarias covid e à medicina intensiva, e o nosso principal problema são os recursos. Estes serão julgados pela sociedade civil sobre a resposta que deram a esta situação".

José Paiva e João Gouveia são dois médicos que têm vindo a alertar para as condições em que o SNS está a trabalhar. Um dever que aparece em primeiro lugar no documento do Conselho de Ética, que cmeça por explicar o porquê da necessidade de definir tais critérios. "Em Portugal, a capacidade de resposta dos serviços de saúde, públicos, privados ou outros, tem sido a possível, mas, num cenário de insuficientes recursos para todos os que dele necessitem, poderá ser necessário seguir os princípios a aplicar em cenários de 'medicina de catástrofe'", pode ler-se no documento.

Do dever de informar à reciprocidade

Para o Conselho de Ética e de Deontologia Médicas, os profissionais têm à partida quatro deveres, que nomeiam, e quase duas dezenas de recomendações para as quais têm de estar preparados em tempos de pandemia ou sempre que surja a necessidade de exercer uma medicina de catástrofe. Mas, em primeiro lugar, o médico tem "o dever de informar. Os médicos têm a obrigação ética de informar a população, de usar a sua liberdade de expressão, com realismo, mas sem alarmismo, e de colaborar com as autoridades para uma tomada de decisão mais informada, adequada e atualizada".

Mais. Um médico tem o dever ético de planear e de se coordenar com outros profissionais, de planificar atividades, partilhar informação e de colaborar". O médico tem "o dever de cuidar", quer esteja no "ativo ou reformado e na medida das suas possibilidades, condições de risco pessoais e competências".

Mas os médicos têm ainda o dever da reciprocidade o de tratar exigindo condições para o fazer. E quando há situações limite de descontrolo de situações, no caso, a pandemia da covid-19, que poderá levar à limitação de recursos, como ventilação assistida, "é necessário estabelecer a triagem dos doentes que terão acesso a esses recursos".

E é nesta situação que os médicos necessitam de "tomar a difícil decisão de condicionar esse acesso, maximizando os seus benefícios. A decisão deverá ter em consideração critérios clínicos e de avaliação de riscos incluindo os da própria medicina intensiva, bem como a maior probabilidade de eficácia do tratamento e sobrevida esperada (idade, comorbilidades, etc.), mas também com proporcionalidade e justiça distributiva".

Ou seja, como explica o documento, a triagem deve estar centrada no "doente com a doença e não a doença no doente que deve presidir às nossas decisões". A dignidade humana não pode nunca estar afastada de uma decisão deste tipo, e esta deve ser enquadrada "no princípio/condição de vulnerabilidade imposto pelo difícil equilíbrio entre o bem individual e o bem comum que esta situação nos impõem".

Da beneficiência e não maleficiência à prudência

Os princípios éticos que devem nortear a atuação ética e deontológica nesta pandemia devem ir da "beneficência e não maleficência, que incluem o dever de bem cuidar e de administrar os recursos adequados (e disponíveis em emergência), aos de justiça enquanto equidade, da proporcionalidade, à responsabilidade à transparência e consistência". A prudência e o bom senso, o diálogo, a colaboração e a solidariedade devem também estar presentes neste processo de tomada de decisão.

No fundo, dizem os intensivistas, "são critérios que já usamos habitualmente na admissão de um doente, em que o principal critério tem a ver com a sobrevivência de qualidade que o doente pode ter depois de tratado numa UCI". Explicando: "Um doente com covid fica internado em UCI uma média de 12 dias, durante os quais perde massa muscular, capacidade de se movimentar, em muitos casos de se alimentar, e se for um doente já com outras patologias associadas temos de pensar se é melhor até para este doente entrar numa UCI". Por exemplo, refere o documento, "os doentes onde o benefício é mínimo e improvável por doença avançada ou terminal não devem, tal como em situações de não emergência, fazer terapia intensiva"

É também claro que os critérios de triagem "não podem ser critérios de prioridade: a ordem de chegada do pedido de admissão ou da chegada aos serviços de urgência hospitalar". Por outro lado, "apesar de muitos dos doentes serem idosos, esta por si só, nunca pode ser usada como critério", esopecificando que "a presença de co-morbilidades e o estado funcional dos múltiplos órgãos devem ser cuidadosamente avaliados, juntamente com a idade".

Decisão fundamentada, comunicada ao próprio ou aos familiares

Mas quando se seleciona, ou quando se decide a limitação de acesso aos cuidados intensivos, a decisão deverá "ser devidamente fundamentadas e resultar de um consenso da equipa de saúde. Esta decisão deverá ser comunicada (ao próprio (sempre que possível) e aos familiares) e registada no processo. Nas situações de tomada de decisões que se apresentem de particular dificuldade e incerteza clínica ou moral, deve ser procurada (por telefone ou outro meio), tanto quanto possível, uma segunda opinião de pares experientes".

No documento está também definido que tais critérios deverão ser "revistos periodicamente e adaptados localmente de acordo com a disponibilidade de recursos, com a possibilidade de transferência do doente e com o número de admissões, naquele momento ou previstas".

As recomendações vão ao ponto de definirem que "o apoio de qualquer meio de oxigenação extracorporal (ECMO), deve ser reservado para casos estritamente selecionados e com previsão razoável de um abandono relativamente rápido"; ou que "a. limitação ou suspensão da ventilação controlada ou assistida, ou a extubação endo-traqueal ou da via não-invasiva, não constitui em si mesmo, indicação para suspender o restante tratamento".

O documento lembra também que antes da admissão de um doente em UCI deverá ser confirmada "a existência de diretivas antecipadas de vontade, que, se existirem, devem ser respeitadas, como forma de reconhecimento autonomia e autodeterminação daqueles que já não se encontrem capazes de expressar a sua vontade".

E, no caso de decisões de suspensão de atitudes curativas, "o médico não pode abandonar nenhum doente que necessite dos seus cuidados, devendo sempre garantir acompanhamento paliativo adequado". "Se for previsível um período agónico a curto prazo, deve considerar-se a transferência para um ambiente fora da UCI e tanto quanto possível respeitador da sua intimidade".

Apoio espiritual e psicológico

No final do documento, o Conselho de Ética estabelece que nos doentes em deterioração fisiológica que "a sedação paliativa deve ser considerada, seguindo as recomendações existentes a respeito, e, sempre que possível, com a colaboração de um especialista em cuidados paliativos. A este propósito, estando o doente ainda consciente e vígil, deve atender-se à necessidade de suporte espiritual adequado".

E quando se chega ao momento da partida, o documento do CNEDM define que "no caso de os doentes que morram numa situação de total ausência ou restrição de visitas, deverá ser garantida, sempre que possível, a possibilidade de se despedir, ainda que através do telefone, dos seus familiares".

A Ordem considera importante que "os familiares de todos os doentes que morram durante este período deverão receber apoio psicológico e/ou espiritual adequados à sua necessidade e vontade" e sempre que solicitada "deverá ser disponibilizada a presença e a assistência de um ministro da sua religião, devendo o referido ministro sujeitar-se a todas as medidas de proteção individual, tal como todos os demais".

Por fim, os últimos pontos das recomendações vão para os responsáveis máximos dos serviços onde sejam admitidos doentes desta pandemia. Estes "devem estar particularmente atentos e providenciar, tanto quanto lhes for possível, apoio psicológico a todos os profissionais de saúde que dele necessitem. Este apoio deverá ser mantido durante o período que for considerado relevante". E quando chegar uma fase de acalmia da pandemia "toda a informação disponível deverá ser partilhada e discutida entre todos os profissionais, no sentido de avaliar o que poderá ser melhorado no desenho de uma estratégia nacional para uma situação idêntica no futuro".

A medicina intensiva é o final da linha dos cuidados de saúde, aquela onde pode ser decidido viver ou morrer. E uma coisa é decidir quando ainda há recursos, outra quando a pressão é tanta que já reduz o racional. A questão é que, e como argumentou ao DN o presidente do colégio da especilidade, "ninguém pode dizer que não era expectável uma situação como a que estamos a viver agora nos serviços de saúde".

 

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